Dizem que, num de seus delírios pós-tropicalistas, o
empresário artístico Guilherme Araújo tentou colocar Maria Bethânia vestida de
fada no palco, com varinha de condão e tudo. A idéia não colou - afinal,
estamos falando de uma cantora que só faz o que quer, capaz de atirar o
microfone longe quando o ensaio vai mal. Mas até que esse toque de fantasia
tinha a ver. Bethânia carrega uma personalidade mística que não escapa às
pessoas mais íntimas. É uma "sacerdotisa" para Caetano Veloso, o mais
ilustre de seus sete irmãos. "Iansã viva" no palpite do jornalista e
produtor cultural Nelson Motta. "Esfinge Baiana" para outro
jornalista, o já falecido Ronaldo Bôscoli. "Um orixá”, na opinião do
escritor Jorge Amado, ele próprio cada vez mais próximo de se parecer com uma
entidade nagô. Nem a nova amiga, a gaúcha e modernete Adriana Calcanhoto, deixa
de fazer um comentário esotérico: "Ela tem um fogo sagrado", avisa
Adriana, autora da música que deu nome ao mais novo pacote de disco e show de
Bethânia, Âmbar.Para não perder o hábito (e dar mais gás a sua aura elegante
odara), esta senhora de 50 anos, a primeira mulher brasileira a esbarrar em um
milhão de cópias vendidas de um dos seus 35 discos, Álibi, de 1978, vive
batendo na madeira para espantar os maus espíritos. Precisar, não precisa.
Maria Bethânia Viana Telles Velloso, faz tempo, vive no Olimpo das grandes
intérpretes da música popular brasileira. Tudo porque, como queriam os deuses,
aos 18 anos saiu da Bahia e substituiu Nara Leão, musa da Bossa Nova, num célebre
espetáculo do Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, em 1965. Franzina, tímida,
caladona, a ilustre desconhecida puxou para baixo os queixos da platéia quando
soltou a voz grave e selvagem para cantar Carcará, de João do Vale e José
Cândido. No refrão - "Pega, mate e come" - , quem engoliu o musical
foi ela, uma estrela desde o começo.Da cidade natal, Santo Amaro da
Purificação, até o paco Olympia de Paris, Bethânia foi aspergindo seu pó mágico
de grande dama. Entre patuás e discos de ouro, entre oferendas às divindades do
candomblé e o dom para endeusar compositores - Djavan, Gonzaguinha -, a cantora
fez fama, fortuna e folclore. Hoje ela é uma diva que mora encastelada na
Estrada das Canoas, zona Sul do Rio, protegida por duas cadelas Boxer e
abraçada por jardins e cachoeiras artificiais. Anti-social, célebre por manter
a vida íntima guardada em mistério, tornou-se um desafio que playboy propôs a
experiente repórter Norma Couri, de volta ao Brasil ao cabo de oito anos como
correspondente do Jornal do Brasil em Lisboa.
O resto da vida é acessório?
Fico fazendo hora para o tempo passar, para poder subir no
palco outra vez.
Você passa isso para o público?
Tem casos de pessoas que assistiram 36 vezes ao mesmo show.
Uma vez, fui procurada por uma mulher com a expressão desesperada, no final do
show. Ela dizia: "E agora, o que eu faço com isso tudo? O que eu faço,
pelo amor de Deus?
O que você respondeu?
Não tem resposta. São coisas que passam sem a gente
perceber. Eu sei de gente que vai assistir ao show calibrado com um drinque
antes e o motel reservado pra depois. Bebem a energia, ela não termina quando o
show acaba.
E você, como sai?
Exausta [risos]. Desabo na cama e durmo.
É como se tivessem tirado tudo de você?
Não, eu é que dei tudo. Minha irmã Nicinha, que eu chamo de
"Babá", já sabe. Quando chego depois do show, ela diz: "Bom, até
já, que eu vou guardar a bolsa", e não volta mais. Sabe que eu não volto
muito normal. Isso há anos.Redondos: 50 de vida, 35 de carreira, 35 discos.Já
passei por todas as gravadoras do Brasil. Sou o contrário da Fafá de Belém,
que, num programa de TV em que os quatro convidados dela eram presidentes de
gravadoras, dizia, muito orgulhosa, que nunca tinha brigado com eles. Eu brigo
com todos e vou-me embora [risos]. Gravadora é pra vender e eu, pra criar. Tem
de haver um desentendimento.
Você também não levaria ninguém para a televisão, porque
detesta, não é?
Eu não rendo em TV. É fria e tem regras assumidas, quem
entra num estúdio de televisão tem de gritar. Ninguém diz: "Por favor, você
poderia se sentar ali?" Não, é assim [aos berros] "Maria Bethânia,
senta ali"[Risos]. Não é humano. Você está cantando, o câmera erra alguma
coisa, o diretor grita, estremece o mundo e seguem-se muitos palavrões. Todo o
mundo é poderoso, o diretor fala "corta" e você some. Fico desse
tamanhinho.
Por causa de sua aparição no programa da Hebe Camargo, há
dois meses, você foi incluída entre os "espantalhos" da TV, junto com
a primeira dama Ruth Cardoso e o cirurgião plástico Ivo Pitanguy. A audiência
caiu 2 pontos [risos].
A Hebe me convidou tanto que eu fui. Só que não agüentei, na
hora de entrar pedi para ir embora. A Hebe implorava e eu chorava... É ruim
porque a televisão é obsessão de brasileiro e eu preciso divulgar meu disco.
Você vê televisão?
Só esporte. Sou louca pelo Chicago Bulls, não perco um
campeonato.
E novela, você acompanha?
Quando o par romântico era Dina Sfat e Francisco Cuoco eu
não perdia [Risos]. A Dina chegava a me ligar no Canecão, em pleno show, para
avisar: "Não perca a cena de amanhã, vai ter camisola preta" [Risos].
Eu adorava as cenas em que ela punha camisola preta. De lá pra cá, Santo
Antônio!, piorou tudo nas novelas, até a luz. Claro, tem o Raul Cortez, o Lima
Duarte, que é gente de teatro. Esses valem a pena.
Você se inspira em alguém? A musa não era a cantora Janis
Joplin?
A gente se conheceu, ela gostava de mim, fez questão de vir
a minha casa quando esteve no Brasil no início de 1970, mas já estava
catatônica com a heroína. Mas o desconforto que ela e o Jimmy Hendrix expressavam
tinha a ver com o Tropicalismo. Era aquela alegria por trás, um querer bem ao
Brasil e o lema: "Não parecemos com ninguém, mas temos um estilo".
Sem a humilhação que o brasileiro normalmente ostenta, sem botar tapete
vermelho para o estrangeiro.
Foi isso que você comentou sobre o terceiro disco de Marisa
Monte, dizendo que era a primeira vez que ela parecia contente em ser
brasileira?
E sem mostrar que fala inglês! Ela vendeu assim: Sou bem
nascida, só me identifico com Nova York, a minha música, a minha maneira de
vestir e andar têm uma raiz novaiorquina. Os discos nova-iorquinos dela são
ótimos, só não me tocam o coração como esse que elogiei [Verde, Anil Amarelo
Cor-de-Rosa e Carvão, de 1994]. Não se iluda, ela não deixou de ser
nova-iorquina, não. Mas jogou com o nome de Paulinho da Viola e o violão de
Gil.
Você não canta em outra língua?
Não. Quando enfio umas canções espanholas no repertório é
porque têm a cara da gente. Agora, não sei quando, vou fazer um disco - com
canções francesas, porque sou apaixonada.
Por Paris?
Queria até fazer o clipe de Âmbar cantando Chão de Estrelas
com cenas de Paris à noite. Você já viu já viu alguma coisa mais parecida com
Paris que "Tu pisavas nos astros distraída/ Sem saber que a ventura desta
vida/ É a cabrocha, o luar e o violão...."? Não dá uma força enorme a uma
canção carioca?, que se refere ao morro do Salgueiro, com imagens de Paris? Mas
a gravadora cancelou.
Paris é tão familiar assim pra você?
É igual a Santo Amaro da Purificação [Risos]. Sempre tive
fixação por Paris. Quando dizia que ia viver viajando pra lá, meus amigos
baianos diziam: "Oxente, essa menina é pequena mas fita os Andes".
Chego lá e é como se estivesse em casa, ando sem parar, e tropeço em astros
distraídas...no lobby do hotel.
Onde você costuma se hospedar em Paris?
No L'Abbaye.
Não é lá que ficava Jorge Amado?
É, e meu companheiro de quarto é o Mastroianni! Quer dizer,
ele se hospeda no mesmo quarto que uso quando vou a Paris, e fica tomando
champanhe na lareirinha lá de baixo, rodeado de um monte de atrizes famosas ,
todas ex-mulheres dele, Catherine Deneuve entre elas.
Você se senta lá também?
Não, mas divido o mesmo chuveiro com ele. Só tem um quarto
no L'Abbaye com chuveiro normal, os outros são aqueles europeus, estilo
telefone de mão, que você tem de ficar segurando. Então, só me hospedo no
quarto 3. Mas teve um reveillon em que eu estava no meu quarto e o Mastroianni
chegou, querendo ficar ali. Falei com o porteiro e soube que aquele chuveiro em
pé foi o Mastroianni quem mandou instalar. Achei que ele merecia que eu cedesse
o quarto - e eu já ia passar a noite fora de qualquer jeito. Ele me mandou um
recado, dizendo que voltava dia 2 para a Itália. E eu mandei um bilhetinho
"Mastroianni, pode ficar" [risos]. Não é pra me sentir em casa?
Vamos voltar pra cá. Ficou em todo o mundo uma dúvida desde
1965, quando você cantava Carcará - "É um bicho que avoa que nem avião/ É
um pássaro malvado/ Tem o bico volteado que nem gavião..." Era um ato
político que tinha a ver com o marechal Castello Branco, na Presidência depois
do golpe militar de 1964? Afinal, Castello era feio e, como o carcará,
nordestino.
Carcará é um pássaro feio, forte, violento, que tem o pode
de carregar uma águia mesmo. E o autor da música, João do Vale, é um cara
intuitivo, estávamos numa ditadura em 1965, ele sabia que a música ia ser usada
no espetáculo do grupo do Teatro Opinião contra a maldade e o poder dos
militares. Era também a força do nordestino , do homem brasileiro dizendo
"sai de baixo que eu também sou carcará".
Você disse que não mistura arte com política.
Mas, como todo artista, sou uma esponja, assimilo, chego no
palco e boto pra fora. Foi isso que aconteceu no panorama cultural daquele
período. Depois, não melhoramos muito. Saímos desses anos negros para cair numa
cilada perversa de causar danos iguais ou maiores. Como eleger aquela quadrilha
que nos deseducou, desnorteou e tirou tudo do lugar.
Você está falando......daquele presidente que a gente botou
pra fora.Fernando Collor. [bate na madeira três vezes e sopra] Não digo o nome
dessa miséria.Você fez campanha por Tancredo Neves, não foi?
Achava o Tancredo um velhinho maravilhoso e torci por uma
idéia, "Diretas Já". Campanha mesmo foi só para o Fernando Henrique
[nas eleições de 1994]. Mas nunca mais faço outra.
Por que? Você se decepcionou?
Está sobrando miséria, violência, desemprego, e as pessoas
fingem que não estão vendo. Lembro-me do julgamento dos "anões do
orçamento", no qual aquele deputado descarado, Genebaldo Correia [do PMDB
da Bahia, cassado pelo Congresso Nacional por corrupção em 1994], aquele
moleque lá da minha terra, olhava para um cheque dele mesmo e respondia
"Não lembro, não" [Risos]. Ele se "esqueceu" de ter
comprado uma fazendinha de 1 milhão de hectares. Pois o poder brasileiro hoje é
Genebaldo.
E quanto ao senador Antônio Carlos Magalhães [do PFL da
Bahia], que apóia o governo?
O Tonico? Ele é como sarapatel: ou se ama ou se odeia. Adoro
ele, é supermaravilhoso, a gente se envia telegramas nos aniversários. Antônio
Carlos é um homem poderoso, que mexe com emoções exageradas, sentimentos
extremados. Todos os Estados têm seus "caciques", e ele é louco pela
Bahia, faz umas campanhas no jornal e na rádio - é tudo dele, o jornal, a rádio
- , como "Orgulho de ser baiano"! E é machão, dasacata todo o mundo,
divide os baianos. Em todos os espetáculos que fiz, desde a estréia no Rio,
dentro ou fora do Brasil, ele estava na platéia.
Você vota nele?
Nós somos uma família de esquerda, não temos formação de
apoiar o pensamento do senador, que é de extrema direita. Depois, voto no Rio.
Mas esse homem trata o artista com o respeito e distinção. E sempre reverencia
minha mãe, Canô, da maneira mais nobre e clássica. Esse gesto de delicadeza tem
de ser agradecido, porque é educação que está faltando no Brasil. E, olha,
quando a igreja de minha cidade, da Nossa Senhora da Purificação, que tem 400
anos, caiu, não houve político de esquerda que desse jeito. Telefonei para o
Antônio Carlos Magalhães, foi na hora - e eu não posso pensar em viver sem a
igreja de Nossa Senhora da Purificação de pé.
O Presidente também é um homem distinto?
Fernando Henrique, que conheci há muitos anos em Paris, na
casa de minha amiga Violeta Arraes [irmã do governador de Pernambuco, Miguel
Arraes], é inteligentíssimo, bem-humoradíssimo, honestíssimo e tem uma conversa
bacaníssima. Agora, como é que ele permite que no governo dele as escolas
exijam avalistas para matricular uma criança?
O Lula daria um presidente melhor?
Votei nele [nas eleições de 1989]. Chorei na hora de votar,
fui criada ouvindo meu pai [José Telles Velloso, falecido em dezembro de 1983],
funcionário dos Correios e Telégrafos, carteiro e poeta, dizer que queria um
trabalhador na Presidência do Brasil.
E o que achava do envolvimento de artistas em outro tipo de
campanha, como a que Daniela Mercury fez para a Antarctica?
A conta da Daniela é do [publicitário] Nizan Guanaes, que é
baiano. Ele patrocina e usa a Daniela. Agora, a Daniela está com uma música na
novela [À Primeira Vista, de Chico César, na trilha de O rei do Gado], até que
está tocando bem. Mas soube que o segundo disco foi um equívoco. Eu não suporto
a axé music, acho um cão. Mas a Daniela tem talento.
E a Adriana Calcanhoto?
Não coloque a Adriana no nível da Daniela, que não tem nada
a ver. A Calcanhoto é uma compositora muuuuuito boooa, uma menina que tem um
trabalho diferenciado, especial, nobre e com muito humor, sem perder o pé no
popular. Faz as performances mais loucas, as poesias mais absurdas, os discos
mais complicados. As gravadoras devem se arrepiar todas quando ela entra em
estúdio. Ela declarou que não gosta de música com princípio, meio e fim, o que
é, no mínimo, louco e maravilhoso.
E Daniela?
É uma moça bonitinha, gostosinha, bem-feitinha, faz essa
linha pernoca-de-fora, tem talento, tem voz, sabe cantar, sabe dançar, sabe
fazer tudo. Mas tem uma musiquinha que não é nada.
Quem toca o seu coração?
Nora Ney é chiquérrima. Dalva de Oliveira é campeã. Hoje a
voz que me comove no Brasil é a de Nana Caymmi.
A onda Mamonas Assassinas não pegou você?
Tive uma pena da morte dos meninos, mas tinha uma grossura
braba ali.
E o Tiririca?
É a prova de que o brasileiro se identifica com suas
misérias: o palhaço sem dente, falando palavrão. Música Sertaneja, Baião,
Forró, Xaxado, Festa Junina, - tudo descambou para essa coisa porca. Parece
aquele filme horrível, com aquela atriz estranhíssima que ataca o Michael
Douglas...
Assédio Sexual, com Demi Moore.
...a grande vedetinha, o maior selário de Hollywood, essa
mulherzinha que deu pra fazer strip-tease e casar com aquele machão [o ator
Bruce Willis]. Pior mesmo, só 9 e ½ Semanas de Amor - nojento, medonho, saí do
cinema no meio do filme. Eu adorava o Waldick Soriano cantando Eu Não Sou
Cachorro Não, mas não acho a menor graça no fulano que canta hoje Eu Não Sou
Corno Não.
Como você escapa dessa confusão radiofônica?
Não ligando o rádio. E lendo Mônica, Cebolinha, Pato Donald,
Tarzan, Fantasma, Drummond, Pessoa, Verlaine, Baudelaire e Proust.
Nessa ordem?
[Risos.] Na ordem inversa. Em quadrinhos eu me viciei depois
de grande. Agora [o romancista francês Marcel] Proust eu lia com 14 anos porque
um grande amigo meu, o [cineasta e diretor de teatro baiano] Álvaro Guimarães,
o Alvinho, me aconselhava: "Bethânia, você tem de ler Proust muito cedo,
para já arrancar na vida sabendo das coisas".
Você entendia o que lia?
[Rindo.]Dançava. Quando desembarquei no Rio, três anos
depois, minha amiga [a atriz] Teresa Aragão voltou a me aconselhar: "Esquece
o que você leu, leia tudo outra vez; você não tinha juízo para ler
Proust". Na época, obedeci porque Alvinho era diretor de teatro. E tudo o
que eu queria na vida era fazer teatro.
Você nunca fez?
O que eu gosto no teatro são os extremos. De um lado, circo,
picadeiro, trapézio. Do outro, personagens como Electra [da tragédia homônima
do poeta grego Sófocles] ou a Adela de A Casa de Bernarda Alba, do [poeta e
dramaturgo espanhol] García Lorca. Descobri que me realizo mesmo é misturando
teatro e circo no espetáculo... e cantando.
Você nunca teve medo do palco?
Nenhum. Hoje tenho medo de tudo, até de avião. Passei a ter
medo das coisas de que mais gostava. Trovoada, por exemplo.
Seu orixá não é Iansã?
Precisamente, a senhora dos raios, dona das trovoadas e da
tempestade. Tenho medo, horror, pavor também de...aquele inseto nojento... que
é igual àquela pessoa cujo nome eu não falo...
[Bate na madeira três vezes e sopra. Risos] Tenho horror de
rato também. O que eu era corajosa antes... Acabou. Andava de moto a 150 por
hora. Enfrentei o Teatro Opinião sem sentir nada. O medo veio agora,
retroativo.
Quando foi chamada pelo Opinião, aos 18 anos, você viajou
sozinha para o Rio?
Caetano teve de me acompanhar, ou meus pais proibiam - eu
era virgem! Caetano e eu sempre fomos muito unidos, parecidos.
Escritor argentino Julio Cortazar, quando viu um espetáculo
de vocês dois no Rio, em 1975, definiu: "Ele e a irmã são a mesma
pessoa".
Isso porque ele não viu o resto da família. Somos oito
irmãos, dois adotados, alguns muito parecidos... Mas Caetano e eu somos
grudados. Quando nasci, ele tinha 4 anos e me deu o nome.
Tirou de onde?
De uma valsa linda do [compositor pernambucano] Capiba,
gravada por Nelson Gonçalves [cantando]: "Maria Bethânia/ Tu és para mim a
senhora do engenho/ Em sonhos te vejo, Maria Bethânia/ És tudo que eu
tenho". Meu irmão Rodrigo queria Mary Gisleine, nome de uma rumbeira do
circo por quem estava apaixonado. Entre a valsa e a rumbeira, meu pai agarrou o
boné e fez o sorteio, cada um pôs um nome. Saiu Mary Gisleine [Risos]. Mas
Caetano fez birra.
Caetano disse que você se atirava no chão, que era exótica,
rebelde...
[Rindo.]Me atirar, sempre me atirei. Enchia o tanque de água
e pulava achando que era o mar. Dava saltos de trampolim da cabeceira da cama,
sonhava que estava dando um mergulho e ficava estática no ar. Como tinha umas
unhas gigantescas e pintava cada uma de uma cor, me achavam muito exótica lá em
casa. Me enchia de pancake na cara, tipo máscara de índio americano, me
enrolava numas roupas de cânhamo misturadas com fios de couro cobre que eu
mesma fazia. E essas loucuras todas eu tripliquei, de rejeição e raiva, quando
meus pais me mandaram estudar em Salvador. Passei a me vestir de Fedra,
copiando o filme da [falecida atriz grega] Melina Mercouri.
Você foi sempre assim?
Engraçada, saudável e feliz.O ventre da minha mãe é muito
limpo. Todos os filhos têm muito humor, o que é fundamental.
Um humor um tanto alterado, segundo dizem...
Oscila, sim. Tenho um rubi no coração com 29 pontas, vai
para todos os lados, dá para muitas pessoas e emoções. Por um lado sou quieta,
interiorana...
...e, por outro, arrumou alguns desafetos. Todo o mundo
soube daquela corrida que você deu no Guilherme Araújo, seu ex-empresário, na
sua própria casa, saindo do banheiro, nua. É verdade que você caiu de pancada
em cima dele?
[Séria.] Hoje ele é meu grande amigo. Tivemos uma discussão
muito violenta, mas foi ótima.
Problema de dinheiro?
Não. Aquela discussão maravilhosa, de trabalho, foi porque
eu sou muito ciumenta. Ele queria trabalhar com a Gal e o Caetano... Queria que
eu fizesse mais show do que eu podia... Foi construtivo.
Pode ter sido construtivo, mas houve tapas.
Não, já passou, somos amigos. Guilherme acabou foi inimigo
da Gal, com quem não fala até hoje. Pelo Caetano, tem respeito. As pessoas têm
é que entender o Guilherme, tudo nele é muito passional, a vida dele não tem
distância de empresário, é relação de casamento. Mas ele gosta de mim. Nos meus
50 anos, pegou uma foto minha aos 25, mandou fazer um cartão lindo e deu para
todos os meus amigos.
Mas você rasgou o contrato que tinha com ele.
Realmente, fui ao escritório dele e falei: "A partir de
hoje estamos rompendo o nosso contrato. Não temos contrato de nada, nem de
trabalho, nem de amizade, nem de amor, nem de nada. A-ca-bou, a-deus." Ele
chorou, disse que eu estava errada. Mas fui embora. Eu sou assim.
Com Ronaldo Bôscoli também teve briga?
Briga, propriamente, não. O Ronaldo, que Deus o tenha, foi
um jornalista que me perseguiu aaaaaaanos, na coluna dele. De repente, começou
a dizer que eu era deusa. Mas nunca me aproximei dele.
Não foi com ele que você e Caetano se desentenderam já no
primeiro Festival Internacional da Canção, em 1966, no Maracanãzinho, no Rio?
Era um canção do Caetano e do Gil [Beira Mar] sobre o mar da
Bahia......e o Ronaldo Bôscoli, que era carioca e estava no júri, falava para
os jornais: "Ué, o que esses baianos estão pensando? Eles não conhecem
Cabo Frio, Saquarema, Araruama, Angra dos Reis? Estão falando que o mar da
Bahia é que é o mais azul do mundo? E Caetano, que já era metido a
galo-de-briga, se enfezou. A música foi desclassificada, né?
Você não brigou também com a Nana Caymmi?
Nana? Não vive sem brigar com alguém [Risos]. Morro de medo
dela, tremo... e morro de rir.
Você teve outro desafeto: Glauber Rocha.
Briga não houve, não. Mas quando Glauber fez O Dragão da
Maldade Contra o Santo Guerreiro [em 1969], eu cantei uma música no filme e ele
cortou. Era um verso, "Será que o sol quebra a vidraça/ Será que o sol vai
quebrar?", só isso. Gravei durante dois dias, só porque amava o Glauber e
minha melhor amiga era irmã dele, a [falecida atriz] Anecy Rocha. Glauber era
um Deus. Ficava trabalhando nu em casa, criava um clima. A Anecy falava:
"Bethânia, não vai lá porque o Glauber está trabalhando", e eu já
sabia que significava: "Glauber está nu". Eles morriam de rir, mal eu
ficava muito tensa, aí a Anecy tentava relaxar: "Vamos quebrar um loucinha
por aí" [Risos], o que na época significava "vamos dar uns
amassos".
Por que Glauber cortou a cena da música?
Não sei. A Anecy explicou que ele precisou tirar toda a
seqüência. Claro que eu nunca cobrei nada, imagina - o Glauber me convidar? Um
luxo! Só que um dia eu estava no [Hoje extinto] bar Zeppelin [Ipanema] quando a
Odete Lara, que era atriz do filme, chegou à mesa e fez uns comentários muito
ruins, botando tudo pra baixo. E eu, é claro, reagi, fiquei com raiva.
Você continuou amiga do Glauber até a morte dele?
A gente se via muito em Paris, ele e a mulher dele, [a
falecida atriz francesa] Juliet Berto. Era uma francesa linda que eu amava, com
quem ele teve a última casa na França, e que durante um show que fiz no Olympia
[Casa de espetáculos parisiense] me deu todas as relíquias do Glauber. Fotos,
cartas, cartazes de filmes, recortes. Ela confiou isso a mim e levei direto
para a tia Lúcia [mãe do Glauber Rocha].
Você falou do seu humor alterado, revendo seus desafetos,
seus períodos negros. É verdade que, nos anos 60, você tentou o suicídio
tomando Varsol e barbitúricos?
Não importa se tomei Varsol, se não tomei, se foram cinco ou
dez comprimidos. Acho que quem tomou Varsol foi uma amiga minha. Eu só tomei
barbitúricos. De qualquer forma, estava num processo depressivo - por nada, ia
tudo bem, carreira, dinheiro ... Eu morava numa cobertura na Rua Nascimento
Silva, em Ipanema, brincava muito nas areias das "Dunas da Gal" [na
praia de Ipanema do início dos anos 70, montes de areias formados durante a
construção de um emissário submarino viraram ponto de jovens, e Gal Costa era
presença constante], andava de boate em boate. De repente, tudo foi ficando
triste e banal. Comecei pedindo remédio pra dormir, fui tomando, apaguei e não
acordava mais. O que importa é que não morri.
O que tirou você desse buraco? A psicanálise?
Foi. Passei por três psicanalistas. Fez brotar alguma coisa
em mim, me despertar, jogar essa angústia fora, agüentar a dor. Depois tive
perdas muito fortes, meu pai morreu e o máximo que me aconteceu foi ficar
mancando.
Você tem medo de ficar velha?
Nenhum. Meu cabelo demorou pra ficar branco e eu peço aos
fotógrafos que não disfarcem, nem na capa do meu disco. Também não vou fazer
plástica nenhuma. Foram cinqüenta anos para chegar até aqui, pretendo me
divertir muito e não jogar nada fora. Até minha voz melhorou.
Qual a parte do seu corpo que você acha mais bonita?
Gosto do meu corpo, minha cara, meus pés, minhas mãos quando
estou cantando. Fora do palco, eu me esqueço.
Você nunca quis ser rechonchuda?Nunca quis ser diferente do
que sou. Convivo muito bem comigo, não me atrapalho em nada.
Você gosta de ser sexy?
Não me acho sexy.
Mas gosta de sexo?Sexo é fundamental?
Importantíssimo.
Só de olhar alguém, você saberia dizer se se trata de uma
pessoa realizada no sexo?
Ah, eu não sou assim craque, não, menina [gargalhada]. Como
dizia uma amiga minha, às vezes é rebate falso.
Mas você diria que sexo muda as pessoas a ponto de os outros
notarem?
Não acho que é tão evidente assim. Depende. Conheço pessoas,
de uma beleza, de uma profundidade, de uma expressão... que jamais tiveram
qualquer relação sexual na vida. Pessoas de chorar de tanta beleza. E conheço
outras que transam, que fazem muito amor, são muito dirigidas para sexo. Tem
períodos mais animados para o sexo, mas, mesmo não fazendo sexo, existe sexo na
cabeça.
O sexo ficou banal?
Ficou. Pra mim, não tem graça nenhuma. É fácil e rápido? Não
quero. Eu gosto desse coisa com tempo, é uma perna que passa, é um olhar
demorado, isso é que eu acho sensual, bonito.
Você acha, como tanta gente, que sexo é para se fazer todo
dia?
To fora. Parece que é um escovar de dentes, o Fantástico
anunciando, "escovar os dentes todo dia, fazer sexo todo dia, comer
tomate, senão morre". Menina, o povo vive doido.
Então a liberação fez mais mal do que bem?
Tem muita gente nova fazendo sexo assim, porque não tem o
que fazer. Isso é loucura. O namoro ainda é o grande momento.
Os complementos?
Lençol de cetim claro. Adoro. Mas na verdade prefiro linho.
Sou apaixonada, não esquenta, e no lençol fica bom.
E roupa?
Acho muito mais bonito uma mulher debaixo de uma cachoeira
vestida do que nua, acho mais bonito tirar a roupa de uma pessoa do que já
encontrá-la sem. Tudo pra mim tem de ter teatro. Você vai se sentar para
almoçar, não tem teatro nisso? Senta, desdobra o guardanapo, pega o copo...é
teatro. A mesma coisa numa relação de amor ou amizade
A vida é um cenário.
E tem que ser bem-feito, com uma boa luz. Um bom espetáculo!
Você é ciumenta?
Sou. Demais. De tudo.
Seus amores acabam por isso?
No amor é onde eu sou menos. Sou muito ciumenta com meus
amigos, família, trabalho. Para trabalhar comigo tem de ser 24 horas para mim.
Mas sou ciumenta também nas paixões, nos amores. Sou muito apegada.
Você namora duas pessoas ao mesmo tempo?
Já fiz.
Quando era jovem?
[Rindo.] Nem era tão jovem.
Ontem mesmo?
Não. A gente tem na cabeça a idéia de que pode trair porque
tem juízo e o outro não pode porque não tem. Já caí nessa, agora não caio mais.
Não tenho mais vontade de anarquia. Já brinquei demais... [Pausa.]E continuo
brincando [Gargalhada].
Mas você tem essa de viver um grande amor de cada vez?
Sempre que se ama, se vive um grande amor de cada vez.
É um pouco coisa de mulher só fazer amor com quem se ama?
Concordo ple-na-men-te!
Se você tivesse que dar algum conselho às mulheres, o que
diria?
Procurar ter prazer em tudo. Quem está sendo traído, que
parta para outra, esqueça - tem tanta mulher, tanto homem no mundo...
É fácil assim?
Nada é fácil nesta vida. Mais difícil é ser humilhada,
traída, amargurada, se achando gorda, feia, velha, desprezível...Não! Segura a
onda. Parte para outra. Ou então agüenta essa numa boa. Se gosta tanto que não
pode viver sem, aproveita o tempo que tiver. Todo o mundo vai ficar muito mais
feliz.
Quem a Aids penalizou mais? O homem ou a mulher?
Pior é essa situação da mulher, a grande sofredora dessa
história. Porque homem não tem vergonha na cara mesmo, parece que encontrou na
lata do lixo, vai com homem, mulher, periquito, papagaio, de tarde, no ônibus,
no elevador, debaixo da mesa - e a mulher em casa, séria, ajuizada...
Contaminada. E olhe lá se não vai ter um júri por aí para dizer que foi a
mulher quem contaminou, que a mulher é que é vadia.
De qualquer forma, é cruel.
O choque da Aids veio como um castigo à leviandade. Estava
demais. Precisava ter um freio, era um não-tinha-mais-onde-parar. O castigo
veio cruel e já perdi muitos amigos, fico apavorada, tenho sobrinhos,
sobrinhas, filhos de amigos jovens, e o Brasil não tem sequer uma campanha
digna, convincente, é uma miséria o que vem sendo feito. Convivo com pessoas
instruídas e pergunto: "Transou com camisinha? Não? Então tem que se
internar, porque é loucura". Isso porque a campanha no Brasil é assim:
"Se possível, use a camisinha".
Não é coisa de país macho? A camisinha faz muita gente
desanimar...
Mas é um tipo de relação sexual que não é carregada por
nenhum sentimento ou atração mais forte, é a mecânica do sexo. É a famosa
excitação artificial, para ter a relação naquele momento. Igual a parar no
posto de gasolina e trocar o óleo de um carro. Já ouvi de muitas amigas:
"Até pensar na camisinha eu mesma já perdi a vontade". Meu queixo
cai.
Você acha que a Bahia tem a ver com a sua sensualidade?
A Bahia é muito sensual e não estou falando de mim só, não.
O povo baiano tem languidez, um jeito ali, uma gingada aqui...
Dizem que é porque o baiano come muito marisco.
Tem um específico: mapé. Uma delícia. Muita vitamina E.Dizem
que é afrodisíaco. Sobre o mapé se brinca muito, porque os pescadores da região
vêm com histórias - teve um que fez filho aos 100 anos - e a base da comida
deles é o mapé. Que é pequenino, mas saborosíssimo. Quem for à Bahia não pode
deixar de comer moqueca de mapé.
Que mais a Bahia tem de especial?
Acho que é tudo. Até o mar da Bahia é morno como a barriga
da mãe da gente. Nunca vou perder essa vontade de estar cercada das águas
baianas, mar, cachoeiras e rios, nunca vou perder essa saudade.
Como você cura essa saudade?
A casa onde moro no Rio há 21 anos, em São Conrado, eu
construí no estilo de uma antiga fazenda baiana misturada com Japão [Risos].
Fica no pé da Pedra da Gávea, que era uma baía onde os fenícios deixaram marcas
- ou talvez fossem hieróglifos do Egito antigo gravados no granito, porque ali
era uma ilha. Quer dizer, morando na Estrada das Canoas, estou no fundo do mar.
Tem cachoeira em casa?
E controle remoto para regular o jato! Não posso viver sem
isso, sou louca por água, é Iansã e Iemanjá em mim.
Quantos Santos você tem?
Muitos. Como fui criada na religião católica, na minha casa
tem Santo Antônio, Senhor do Bonfim, Santa Bárbara, Nossa Senhora da
Purificação, a Sagrada Família, Deus Menino, tenho de tudo que é para minha
adoração. É uma casa de santos para o candomblé, que não comporta imagem.
São suas relíquias?
Entre outras. Tenho no altar dos meus troféus, um par de
sandálias douradas tamanho 33, de plataforma altíssima, que pertenceu a Carmen
Miranda, um vestido da Dalva de Oliveira e as pulseiras de Elizeth Cardoso.
Tudo é relíquia. Mas não se pode misturar o candomblé com o resto.
Você tem medo de despacho de macumba?
Naquela época do suicídio me disseram que tinha muito
despacho em cima de mim, mas eu nem conhecia candomblé. Sabe como eu conheci a
Mãe Menininha? Através do Vinícius de Moraes. Foi ele que me apresentou a ela,
uma das maiores alegrias da minha vida. Paixão, paixão, paixão! Eu, baiana, não
sabia de nada, tanto que encerrava Rosa dos Ventos vestida de preto da cabeça
aos pés. Foi a primeira coisa que o candomblé me proibiu. O preto não combina
com os meus orixás.
Você curte igreja?
Nunca deixei de celebrar meus aniversários com missa, sempre
na igrejinha de São Conrado, com o padre Djalma, um dos raros que eu respeito e
adoro, um padre de muito juízo, valor e vocação. Mas este ano a capelinha
estava em reforma e eu fazia 50 anos. Então, minha mãe fez a festa na Bahia e
encomendou a missa na igreja de Santo Amaro da Purificação. Missa em latim.
Olha, foi de uma elegância, de um chiquê...Com três padres, muita pompa, tudo a
que eu tinha direito.
Você fala muito em Deus.
Quando eu era pequena e acreditava piamente em Deus, Caetano
chegou para mim e disse que Deus não existia. "Acredita não, Deus sou eu,
mana, eu é que sou Deus" [Risos]. Apesar disso, continuei acreditando em
Deus. O que não tenho é muita intimidade com Ele. Me dá um pouco de medo. Como
fui criada em colégio de freiras, o convento de Nossa Senhora dos Humildes, em
Santo Amaro, fui ameaçada com a imagem daquele Ser que vê tudo, um perseguidor,
um milico tirano me vigiando para me botar em cana a qualquer momento.
Intimidade, mesmo, eu tenho com Nossa Senhora - com ela, tudo bem.
Quem trabalhou com você jura que não pode ter ruga na roupa,
o palco é purificado com sal grosso nos cantos e você nunca chega para um show
com menos de 3 horas de antecedência.
Olha, tem muita fantasia e acaba virando tudo tão banal.
Ruga na roupa não pode, mesmo, e eu nunca chego com menos de 3 horas de
antecedência nos meus shows. Mas as coisas que são feitas dentro da religião
devem ser preservadas e respeitadas. Numa casa de candomblé se trabalha muito,
trabalho braçal, trabalho de concentração, de monitoração. Não é nada dessas
pequenas bobagens. Mas estou convencida de que devo estimular esse tipo de história.
Por que?
Porque sou muito calada, na minha... O que eu não faço é que
incomoda as pessoas. Não freqüento boate, não janto em restaurante, não vou
aonde tem foco para ser fotografada. Sou pessoa de dentro de casa e saio quando
dá vontade e para o que me interessa.
Você vai a festa de Iemanjá?
Acho imperdível. Quem perder a do Rio pode recuperar os
fluidos na festa da Iemanjá baiana, que é no dia 2 de fevereiro, com saída de
barquinhos cheios de presentes para a rainha do mar. É a festa mais bonita do
Brasil. Mas também acho que ninguém deve perder o Boi-Bumbá, em São Luís do
Maranhão, o Reisado, as nossas tradições para as quais, infelizmente, não temos
um Ministério da Cultura preparado.
É uma crítica ao ministro Francisco Weffort?
Eu nem sabia que ele existia. Mas vi o ministro sendo
entrevistado num programa de TV, o Roda Viva, e pensei: "Será que estou
ficando pirada? Esse ministro é da cultura ou da economia?". Durante 50
minutos ele só falou de verbas, dinheiro e outros palavrões. Depois vi que ele
foi homenageado pelas Tietas do Brasil, Betty Faria e Sônia Braga. Agora, de
tradição ele não manja nada.
Isso é um recado?
Estou dizendo que a coisa mais bonita que o Brasil tem é a
cultura popular. Sabe quem está preservando essa cultura? Famílias simples como
a minha, meu pai, que era funcionário dos correios e ensinou música aos oito
filhos. E gente como o [percussionista] Naná Vasconcelos. Naná junta 500
crianças de rua em Recife, ensina todo o mundo a tocar em caixa de fósforo,
lata de cerveja, tampa de panela. Ensina nossos ritmos, percussão. No final de
um tempo, ele elege 100 crianças e faz um disco. Isso é um Ministério da
Cultura. E sabe com quanto dinheiro ele trabalha? Nenhum. É maravilhoso, mas é
dever do Estado: preservar, não ter vergonha. Para assimilar o que vem de fora
a gente não tem de acabar com o que é nosso.
Como?
Por exemplo, fiz questão do colocar a Virgínia Rodrigues,
uma garota fantástica, a voz afro-lírica-baiana mais bonita do momento, no meu
novo disco. Também mando rezar missa todo Dia de Reis, a 6 de janeiro. Minha
mãe foi porta-estandarte dessa festa durante muitos anos e outro dia passou o
estandarte para mim. Dancei um pouco na rua, morta de vergonha. Mas cumpri a
tradição.
E no Rio?
Também tiro Reis para os amigos. É uma festa-surpresa. A
gente arruma os três Reis Magos, as pastorinhas, as ciganinhas, os convidados,
a orquestra, a porta-estandarte, o anjo que leva a coroa, combino com as
pessoas e levamos tudo, comida, bebida, presentes. Aí, a gente bate na porta da
casa de alguém, canta-se, canta-se, canta-se até a pessoa abrir a casa e é
festa até de manhã. O amigo não gasta nada e ainda se diverte.
Para quem você já fez?
A última foi para o Caetano, no apartamento dele do Leblon.
A Gal anda enfurnada nessa casa que ela comprou em Trancoso [vila no litoral da
Bahia], está mais do que preguiçosa de sair da beira do mar. Meus amigos
passaram a morar todos em apartamento, andam meio desanimados, precisam
levantar com essas coisas.
O que os amigos deram a você na festa dos 50 anos?
[Risos.] Seguindo aquela linha que eu deveria animar meus
amigos [gargalhadas], pensei: eles precisam de uma injeção. Resolvi dar o
presente primeiro.
O que você deu?
Camisetas. Mandei imprimir várias. Numa, o título do
primeiro romance que li, O Coração é um Caçador Solitário [da falecida contista
americana Carson McCullers]. Noutra, o final de Chão de Estrelas, "Tu
pisavas nos astros..." com [o quadro] Noite Estrelada, de Van Gogh, que me
arrebata, ao fundo. Para o desenho da terceira, escolhi uma menina africana da
tribo gigante Kao com as mãos nas cadeiras, e por cima estampei a frase de um
cubano, que era tudo o que eu queria dizer aos 50 anos.
E o que é?
"Aprendi a não me entristecer com pouca coisa”.
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